Nayara Matteis 09/03/2020
Lizete comanda o Grupo Tauá de Hotéis ao lado do irmão
Bem-receber, acolhimento, aconchego, amor, hospitalidade. Quando você escuta estas palavras, o que lhe vem à cabeça? Um homem ou uma mulher? Os substantivos citados remetem qualidades atribuídas ao mundo feminino, certo? Estamos falando, na verdade, dos pilares da hotelaria. Como um mercado baseado em características tão femininas foi construído e consolidado por homens? Será que o modelo utilizado nas últimas décadas sustentará o futuro?
Levantamento da Folha de São Paulo baseado em dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais) aponta que o número de mulheres em cargos gerenciais no mercado de trabalho aumentou de 32,3% para 39,2% de 2003 a 2017. Em posições de direção, o avanço foi ainda maior: pulou de 31,9% para 42,4% em igual período.
Em fevereiro, a Castell Project, organização norte-americana dedicada a acelerar carreira de mulheres na indústria de hospitalidade, divulgou o Woman in Hospitality Industry Leadership 2020. O estudo mapeia a presença feminina em posições de gestão dentro do setor. Em sua terceira edição, a pesquisa aponta que, no geral, mulheres ocuparam 8% dos cargos de liderança em 2019, incluindo funções como diretora administrativa, presidente e CEO.
Recursos Humanos, Marketing, Contabilidade e Jurídico estão entre as áreas com maior presença feminina. Em campos como tecnologia e investimento, as mulheres seguem com pequena parcela dentro das equipes. Em conferências de investimentos, as profissionais representam 21% dos participantes, percentual que se manteve estável em relação aos anos anteriores.
No Brasil, o setor hoteleiro vem recuperando sua força após um período de recessão, e com isso, revendo prioridades e propósitos. Com tais mudanças, mulheres ditando políticas empresariais mais humanitárias e diversificadas são a aposta para a transformação de um mercado que insiste em cultivar a velha e tradicional hotelaria.
Ana Carolina destaca a relevância de atributos femininos na vida profissional
Lideranças femininas: tirando a máscara
Filha caçula e única mulher de três irmãos, Lizete Ribeiro, sócia do Grupo Tauá de Hotéis, mesmo vivenciando o dia a dia da operação hoteleira desde os nove anos de idade, precisou adotar uma postura mais masculina e assertiva para ganhar espaço na gestão dos negócios da família. “Tive minha mãe como referência e, aos 21 anos, assumi a área Comercial da empresa. Há 20 anos atrás era muito mais difícil ser mulher no mundo corporativo, mas com a firmeza que tive em minha criação e autodisciplina, me preparei e fui consistente em seus posicionamentos”, conta.
A rede, que hoje conta com cinco empreendimentos, cresceu. Atualmente, Lizete divide a administração com o irmão Daniel Ribeiro, nomeado CEO do grupo ano passado. Para a executiva, lidar com as dificuldades de gênero foram um fortalecimento para a vida profissional. “Foi um processo de preparação e vejo isso como algo positivo”, avalia.
O comportamento parece ser padrão entre as líderes. Ana Carolina Fusquine, vice-presidente de Business Unit Hotels da Pmweb, relembra que, para chegar onde está, precisou vestir uma máscara “masculina” para provar sua competência. “Entrei como gerente de contas em 2007. Em 2008, abri o escritório em São Paulo e foi quando lançamos a ferramenta de CRM, que hoje é um de nossos principais produtos. Desenvolvemos novos negócios e, após abrir estes caminhos, fui escolhida como vice-presidente da área”, diz, ao fazer uma retrospectiva da carreira. “Tive que provar o meu valor para me destacar e ter uma postura diferente. Muitas vezes, esta é a única alternativa que tinha para ser reconhecida. A maioria das mulheres acaba fazendo isso, mas não é a nossa essência”, completa.
A empresa, com cinco mulheres em cargos de liderança, formou seu time com pratas da casa que se destacaram em suas áreas. Com uma representação feminina tão expressiva, a vice-presidente afirma que um dos valores da Pmweb é trazer diversidade de ideias e inovação, ouvindo diferentes pontos de vista e abrindo espaço para as colaboradoras exercerem suas funções sendo quem são. “Trazemos o que somos e coloco o que acredito na minha liderança. O diferencial das mulheres é exatamente a capacidade de enxergar detalhes. Colocamos as pessoas em primeiro lugar”.
Com apenas 35 anos, Flávia Lorenzetti, head da rede Selina para o Brasil, precisou mostrar que é muito mais do que um rostinho bonito. Com o status de primeira mulher a comandar a operação em nível nacional do grupo, ela conta que em reuniões já chegou a ser confundida com a secretária e não identificada como gestora. “Sempre existe aquele momento que temos que nos provar. Chega a ser algo inconsciente da nossa formação adotar determinadas posturas”, diz.
Flávia: primeira mulher a assumir a gestão em nível nacional do Selina
Salto nos resultados
O LSH Lifestyle Hotel (RJ) vive atualmente um de seus melhores momentos. No acumulado de 2019, a propriedade carioca viu seu faturamento subir mais de 100%. À frente do departamento de Marketing desde 2017, Lia Coutinho é a porta-voz oficial do empreendimento e responsável também pelas áreas de Eventos, Vendas e Comercial. Além dela, outras quatro mulheres comandam os departamentos de RH, Jurídico, Operações e Governança, mas nem sempre foi assim.
“Quando entrei, as gerências eram quase todas masculinas. A gestão era mais ríspida e nós, como um hotel lifestyle, precisávamos de profissionais mais flexíveis, que trabalhassem com mais cumplicidade e empatia”, conta. A gerente ainda explica que, com as mudanças, algumas lideranças foram “enxugadas”. O departamento de Operações, por exemplo, passou a ser responsável pelas áreas de TI e A&B. “Conseguimos mais controle e uma comunicação mais saudável, que flui muito melhor”, acrescenta.
Há um ano operando no Brasil, a Selina é conhecida por fazer uma “nova hotelaria”, celebrando a diversidade e a conexão entre os hóspedes. Com cinco unidades abertas, a rede vem apresentando bons resultados em todos os empreendimentos. Segundo Flávia, as mulheres estão por trás de departamentos como Desenvolvimento e Engenharia, enquanto os homens têm maior atuação nos hotéis. “Temos uma parcela expressiva de profissionais femininas em nosso time. Acredito que as mulheres têm uma visão multitarefa e maior sensibilidade para lidar com o cenário como um todo”, diz.
Lia divide responsabilidades no LSH com outras lideranças femininas
Machismo x sororidade
Falar sobre liderança feminina e não falar sobre machismo é, no mínimo, contraditório. Obviamente, todas as entrevistadas alegam ter sofrido algum tipo de discriminação de gênero em algum momento de suas carreiras. Outras mais, outras menos. Ana Carolina afirma que, na hotelaria, os homens são menos preconceituosos e mais gentis, pelo simples fato de trabalharem com hospitalidade. “Atendemos a outros segmentos, mas sinto que na hotelaria eles são mais calmos e educados. O bem-servir muitas vezes parece estar enraizado no comportamento”, avalia.
Já a gerente do LSH garante que o relacionamento é tranquilo com o time masculino do hotel, mas da porta para fora o cenário é diferente. “Nosso CEO é homem, jovem e tem a cabeça aberta. Viajo muito e 90% do trade é composto por homens. Já passei por casos de assédio e machismo, principalmente com relação à maternidade. No LSH priorizamos o respeito, a cumplicidade e a empatia”, revela.
Lizete garante que, dentro das unidades do Tauá, a segurança e o bem-estar são as prioridades da gestão e nenhum tipo de assédio, seja por parte de hóspedes ou colaboradores, é tolerado. “Nossa política é de tolerância zero. A partir do momento que o espaço do outro foi invadido, nossos colaboradores têm carta branca para tomar as atitudes necessárias”, assegura.
Em um ambiente com tantas mulheres atuando em conjunto, Ana explica que a admiração, sororidade e empatia fazem parte do dia a dia da empresa. “As mulheres de fato se empoderam como grupo, se valorizam e se colocam dentro da organização com respeito. Existe esse peso, esse cuidado de enaltecer a colega. Nossa hierarquia é bem horizontal, então a colaboração entre os times é muito grande”, conta.
Questionadas sobre o que falta para as mulheres quebrarem de uma vez por todas as barreiras que ainda são colocadas em seus caminhos profissionalmente, todas foram enfáticas: tempo. Ainda que lentamente, as profissionais estão ganhando seus espaços e conquistando resultados acima do esperado com um olhar mais humano para as relações e para o trabalho, delas e dos outros.
Quebrar as correntes não só da sociedade machista, mas de um mercado que se preocupa mais com números e desempenho do que com o bem-estar dos colaboradores é a mensagem por trás de cada fala e cada história. Voltando aos pilares, a hotelaria precisa entender que dar espaço às mulheres é trazer à tona sua real e verdadeira essência.
(*) Crédito da capa: brookelark/Unsplash
(**) Crédito das fotos: Divulgação
(***) Crédito da foto Lia Coutinho: Vinicius Medeiros